sexta-feira, 3 de abril de 2009

O lipoaspirador de defeitos terrestres



Boris Karloff interpreta o "monstro" no filme "Frankenstein" (1931), dirigido por James WhaleReprodução


A cirurgia plástica deixa para trás o estilo Frankenstein e se aproxima do perfeccionismo de Pigmalião. Dia após dia, deglutimos toneladas de notícias sobre as possibilidades inauditas da nossa tecnociência. Novos caminhos que provocam tanta admiração como espanto: cada vez mais, os humanos somos capazes de criar ou alterar profundamente a vida. Porém, as reflexões sobre o assunto não são novas, elas remontam à mais longínqua Antiguidade.
A mitologia grega, por exemplo, conta a história do escultor Pigmalião, que se apaixonara por uma belíssima estátua, com a qual acabou casando, numa união que se revelara mais “feliz” do que jamais teria sido possível com qualquer mulher de carne e osso. Já outro criador de seres quase-humanos, o famoso Dr. Frankenstein, como sabemos, não teve a mesma sorte com sua criatura...
Hoje, quase 200 anos depois do nascimento daquele monstro gótico engendrado na literatura, vale a pena pensar na persistente atualidade dessa lenda. Se tivesse que ressuscitar nestes alvores do século XXI, aquele ser imaginado em 1818 pela escritora britânica Mary Shelley seria bastante diferente. Em vez dos fragmentos de cadáveres mal costurados e do choque elétrico que lhe deu o inefável sopro vital, é provável que entrassem em cena dois novos fatores: o cálculo informático e o instrumental da biotecnologia. E também, é claro, a precisão e elegância dos bisturis estéticos.
Pois nas mãos dos cientistas-escultores da atualidade, aquelas rudezas analógicas da era industrial foram claramente superadas. Sejam engenheiros geneticistas ou cirurgiões plásticos, sua assepsia e exatidão parecem inspirar-se na lógica digital. Por isso, as criaturas produzidas pelos cientistas de hoje em dia iludem com sua ambigüidade, dificultando a diferenciação entre o que é natural e o que é artificial.
Basta lembrar dos protagonistas de filmes mais recentes de ficção científica: longe do mostrengo frankensteiniano, sua qualidade não-humana é impossível de ser identificada a olho nu. O personagem interpretado por Harrison Ford no filme “Blade Runner”, por exemplo, era uma espécie de policial especializado na caça aos andróides, que recorria a uma série de testes psicológicos e questionários, utilizando um conjunto de aparelhos mecânicos para medir a dilatação do íris ocular e outros sinais corporais. Tudo isto para saber se tal criatura era um ser humano ou um “replicante”; ou seja, um ser artificial, fruto da engenharia genética e da programação informática.
Mas todas essas artimanhas de raiz analógica resultam ineficazes para detectar a condição não-humana dos seres híbridos mais avançados: esses instrumentos ficaram obsoletos. Algo semelhante ocorre em outros filmes deste tipo, tais como “Inteligência Artificial”, de Steven Spielberg, e a saga “Matrix”. Eles são igualzinhos a nós -ou, então, são bem melhores do que nós.
As cicatrizes dos novos “monstros”, que poderiam revelar os rastros da intervenção tecnocientífica em seus corpos, são bem mais sutis das que delatavam a grotesca artificialidade daquele ser inventado nos inícios do século XIX. Agora essas marcas se tornam imperceptíveis, convertendo inclusive as novas criaturas híbridas ou tecno-humanas em seres menos “monstruosos” que os originais pré-tecnologizados. Ou seja: nós, ou pelo menos alguns de nós.
Um dos médicos que participaram na cirurgia do primeiro transplante de rosto, por exemplo, realizada na França no final de 2005, referiu-se à condição da paciente no estado prévio à intervenção como “monstruosa”, enquanto a operação teria lhe devolvido sua condição “humana”.
Salvando as distâncias, é o que pretende provar Cindy Jackson, autora de dois livros de sucesso e também do seu próprio corpo, inspirado nas “boas formas” da boneca Barbie. Após várias dezenas de cirurgias plásticas, essa mulher de origem inglesa conseguiu efetuar uma transformação radical em seu corpo e sua subjetividade: agora sim, ela se considera bela. Semelhante é o caso da vencedora do concurso Miss Brasil de 2001, que admitiu ter se submetido a 19 cirurgias estéticas: lipoaspirações e silicone, além de várias correções no rosto.
Trata-se de versões extremas de uma tendência que está se popularizando velozmente em todo o mundo. No Brasil, aliás, o mercado da cirurgia plástica cresce a um ritmo de 20% por ano. Com mais de 600 mil intervenções por ano, o país ocupa o segundo lugar no mundo, somente ultrapassado pelos Estados Unidos. Os procedimentos mais solicitados são as lipoaspirações em diversas partes do corpo e o implante de silicone nos seios. Em seguida vêm os retoques na face, como as modificações na forma do nariz e na pele das pálpebras.
Conforme o imaginário atual, porém, essa renomada especialidade médica não parece mais operar com bisturis e tesouras, que fazem cortes na carne e deixam dolorosas cicatrizes no pós-operatório. “Quanto mais civilizada for a sociedade que ministra dor, tanto mais ela irá ocultar o fundamento da crueldade na qual essa dor se sustenta”, explica Enrique Ocaña, autor de diversos estudos sobre a relação entre técnica e dor. O ensaísta espanhol ainda recorre a um texto escrito em 1836 por John Stuart Mill, um dos pais da sociologia, lembrando que “cirurgiões, juízes e soldados mantêm relações de parentesco com o carrasco e o açougueiro”
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Mas a tarefa da “civilização” consiste em ocultar tais afinidades. Assim, enquanto os resultados almejados nos rostos e corpos dos pacientes são notoriamente exibidos, costumam esconder-se os procedimentos (sujos e penosos) que levam a atingi-los. Mostra-se apenas a reluzente “versão final”, o resultado como uma bela imagem, enquanto os rudes métodos são discretamente silenciados.
Portanto, a cirurgia plástica é “vendida” como uma técnica não apenas onipotente e quase mágica, mas também asséptica e virtualmente indolor. Quase digital, como se em vez de operar com instrumentos de metal afiado que rasgam a pele e dilaceram a carne, os profissionais desta área trabalhassem apenas sobre a mais etérea imagem corporal, utilizando dóceis ferramentas de software de design como o popular PhotoShop.
De fato, a palavra cirurgião tem uma origem curiosa: provém do latim “chirurgia”, por sua vez tomado do grego “kheirurgia”, cuja etimologia remete ao trabalho manual ou à prática de um ofício: “kheir” (mão) e “érgon” (trabalho). Essas raízes revelam um lado esquecido dessa prática: desde a Antiguidade até alguns séculos atrás, a tarefa do cirurgião não era muito valorizada. Até o Renascimento, inclusive, os médicos costumavam deixar esse “trabalho sujo” aos cuidados dos açougueiros ou dos barbeiros.
Se pensarmos no auge atual das cirurgias plásticas e no crescente prestígio e fortuna de seus executores, surge uma ironia: hoje cirurgiões e cabeleireiros tornam a se aproximar, como profissionais bem cotados a serviço desse recurso tão prezado: a beleza física.
Há uma enorme diferença, porém, com o que ocorria antigamente: sua qualidade de “trabalho sujo” foi abafada, e sua boa reputação não cessa de aumentar. Ou, pelo menos, seus orgulhosos representantes teimam em remanescer o mais longe possível da pavorosa figura do açougueiro. De fato, conseguem-no: aquela imagem ensangüentada foi asseada e glamourizada. Assim, os cirurgiões estéticos de nossos dias se afastam do Dr. Frankenstein... enquanto se aproximam inquietantemente de Pigmalião.
“O Moderno Prometeu”: eis o subtítulo da célebre história do monstro criado em laboratório pelo personagem de Mary Shelley. Pois a fábula recriava a tragédia desse outro herói mítico grego: o titã que foi duramente punido pelos deuses por ter feito aquilo que não devia, por ter usurpado as prerrogativas divinas, revelando aos homens os segredos do fogo.
Não é por acaso: o relato gótico foi escrito em meio às experimentações científicas que proliferavam nos inícios do século XIX, junto aos debates suscitados pela descoberta da eletricidade, e pelas potências vitalistas que esse novo tipo de energia poderia trazer, incluindo a possibilidade de ressuscitar os mortos e de reacender a indizível “faísca da vida”
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Nas páginas do romance, porém, o médico-criador se arrepende e confessa o estranho impulso que alimentara seu projeto desmesurado. “Com uma paciência incontida e constante, eu perscrutava a natureza em seus lugares ocultos”, relata um Dr. Frankenstein humilhado pelo fracasso da sua audaciosa empreitada -ou por seu terrível sucesso. “Recolhia ossos nos necrotérios e perturbava, com dedos profanos, os segredos tremendos da estrutura humana.” E logo se pergunta: “Quem poderia imaginar os horrores de meus trabalhos secretos, enquanto eu profanava sepulturas frescas ou torturava animais vivos para animar o barro inerte?”
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Mas já era tarde; como se sabe, o castigo não demoraria a chegar. A conclusão é tão óbvia como prometéica: os conhecimentos e as técnicas dos homens não são todo-poderosos; seus “dedos profanos” não podem perturbar todos os âmbitos, pois há limites que devem ser respeitados. Mas os cirurgiões plásticos de nossos dias, ao que parece, perderam os temores aos castigos divinos. Por isso, esses personagens tão contemporâneos encarnam a versão mais atual de outro mítico doutor: Fausto, aquele que é capaz de compactuar com o mesmíssimo Diabo para “ir além”, sem medir e nem temer as possíveis conseqüências.
Paradoxalmente (ou não), já se foram os tempos em que a beleza era um dom divino e sua falta uma maldição, um lamentável castigo dos deuses que exigia a mera resignação. Ou, no máximo, levava a exercer as discretas artes da dissimulação cosmética.
Foram-se embora, também, os tempos em que os primeiros “cirurgiões da beleza”, verdadeiros pioneiros desta especialidade hoje triunfal, eram desprezados por seus colegas devido à “futilidade” de suas metas. Há mais de um século, esses médicos eram acusados com o apelativo de “quack”, ou “charlatães”, bem diferentes dos cirurgiões plásticos “sérios”, aqueles dedicados à “restauração de funções” danificadas por acidentes ou malformações congênitas
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Assim como a eugenia e as experiências genéticas, a cirurgia plástica também possui um passado dúbio. Vínculos ancestrais ligam a origem dessa especialidade médica, no final do século XIX, à “correção” de traços faciais considerados inferiores, como as intervenções que permitiam “restaurar” narizes e orelhas associados ao fenótipo judeu.
Hoje a cirurgia plástica se populariza em todos os cantos do planeta globalizado, embora sua incidência seja inusitada nos países asiáticos. A Coréia do Sul, por exemplo, registra a média mundial mais alta desses cirurgiões por habitante.
Nessas regiões do mundo, fazem sucesso as técnicas que prometem eliminar os traços tipicamente orientais, a fim de “ocidentalizar” as aparências, tais como o formato dos olhos e dos pômulos. Refletindo essas tendências, foi lançado na China um concurso de beleza exclusivo para mulheres “ocidentalizadas” dessa maneira.
Impossível não remeter, então, à velha eugenia nazista? Apesar das inquietantes semelhanças, há uma diferença fundamental: hoje todas as aberrações que conspiram contra o “corpo perfeito” parecem ter possibilidade de cura.
Através das cirurgias plásticas e de outras técnicas à venda, é possível eliminá-las, retocá-las, lipoaspirá-las. Portanto, diferentemente do que postulavam as teorias eugênicas da primeira metade do século XX, hoje a condenação não é fatal e tampouco deve ser contornada mediante políticas públicas nacionais.
Nesta nova “eugenia soft”, a salvação depende de cada um. E é um negócio extremamente lucrativo, embora pareça alicerçado em bases ilusórias: já na década de 1980, a indústria de produtos de beleza investia em publicidade até 80% do seu orçamento, cifra que não cessa de aumentar junto com a expansão dos mercados e das margens de lucros.
Nesse quadro, não surpreende que programas de edição gráfica como o PhotoShop desempenhem um papel cada vez mais primordial na construção das fotografias midiáticas que expõem “corpos belos”. Tais técnicas oferecem às imagens corporais tudo o que a ingrata Natureza costuma escamotear aos organismos vivos, e que as duras práticas analógicas (dietas, musculação, cosméticos) ainda insistem em lhes negar:.
Com esses bisturis de software, todos os “defeitos” e outros detalhes demasiadamente orgânicos são eliminados dos corpos fotografados: com um clique do mouse, corrigem-se na tela do computador. Assim, as imagens expostas aderem a um ideal de pureza digital, longe de toda imperfeição brutalmente analógica.
Mas esse modelo digitalizado logo extrapola as telas para impregnar os corpos e as subjetividades -torna-se, então, um padrão digitalizante. Pois as imagens assim editadas se convertem em objetos de desejo a serem reproduzidos na própria carne.

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